O remédio mais caro do mundo
por Isabelle Bernardes
Cerca de 10 mil bebês no mundo sofrem com atrofia muscular espinhal, doença genética rara, degenerativa e progressiva, que mata em 90% dos casos e é a principal causa genética de morte em bebês. Uma única dose de um medicamento pode reverter e regredir pelo resto da vida as consequências dessa doença, porém a aplicação custa R$ 12 milhões, tornando este tratamento o mais caro do mundo.
A atrofia muscular espinhal, ou AME, causa a perda dos neurônios motores, células do sistema nervoso que controlam o movimento dos músculos. A degeneração dessas células causa perda de neurônios motores da medula espinal e do tronco cerebral, resultando em fraqueza muscular progressiva e atrofia. Hipotonia, paralisia, arreflexia, amiotrofia e miofasciculação constituem os sinais definidores da doença.
Essa doença é classificada de maneira mais completa em 5 tipos (0, I, II, III e IV), de acordo com a idade em que os sintomas se desenvolvem e a sua gravidade. Nos casos mais graves (tipos 0 e I), problemas motores e respiratórios se desenvolvem já nos primeiros meses de vida. Conforme a doença evolui, a criança vai enfrentando problemas como dificuldade para sustentar a cabeça, engatinhar, sentar, andar, falar, se alimentar e até respirar, sendo necessário conectá-la a um respirador artificial. Os sintomas costumam se manifestar nos primeiros meses após o nascimento – e, antes do bebê completar o primeiro aniversário, a taxa de mortalidade é de 90%. Os que sobrevivem não costumam viver muito: a expectativa de vida para a AME tipo 1, a forma mais grave, não passa de dois anos.
AME é provocada por defeitos no SMN1, um gene que contém as instruções para que o organismo produza a proteína SMN (sigla em inglês para “sobrevivência do neurônio motor”). Quando o corpo não fabrica a proteína SMN, ou faz isso em quantidade insuficiente, os neurônios motores – que ficam dentro da medula espinhal e levam sinais do cérebro para os músculos – vão definhando. E o paciente vai perdendo os movimentos do corpo.
Esse tipo de atrofia é uma doença recessiva, ou seja, ela é herdada através da mutação em ambas as cópias do gene SMN1. Aproximadamente, 2% da população possuem uma única cópia defeituosa do gene. São os chamados “portadores”, que não desenvolvem a doença. Mas se dois portadores se casarem e tiverem um filho, ele terá 25% de chance de herdar ambas as mutações, e ter AME.
O diagnóstico da doença é confirmado com testes genéticos que determinam se há mutação no gene SMN1. O problema é que o acesso a esses exames também não é fácil. Em maio de 2021, foi aprovada uma lei que amplia a análise de doenças genéticas no “teste do pezinho”, oferecido pelo SUS e que atualmente rastreia 50 doenças, a análise da AME nesse teste será incluída na quinta e última etapa desse processo.
Anteriormente, as pessoas que conviviam com AME e suas famílias não tinham opções de tratamento que alterassem a história natural da doença. Porém, atualmente, ela possui tratamento: o Zolgensma, um medicamento lançado em 2019 pelo laboratório suíço Novartis. Com apenas uma única dose é possível regredir os efeitos da doença pelo resto da vida e funciona em 97% dos casos. A má notícia é que se trata do remédio mais caro do mundo. A dose de Zolgensma custa US$ 2,1 milhões – cerca de R$ 12 milhões pela cotação atual.
A AME não tem cura, porém o uso do medicamento Zolgensma pode reverter a doença, pois consegue substituir o gene SMN1 defeituoso por uma cópia normal. Ele usa a tecnologia de vetor viral, a mesma empregada em algumas das vacinas contra Covid.
O medicamento contém um adenovírus geneticamente modificado, o AAV9, que é injetado na corrente sanguínea do paciente e se espalha pelo corpo, inundando o organismo com uma versão sadia do gene – dose, que é calculada de acordo com o peso do bebê, contém mais de 300 trilhões de unidades dele. Algumas chegam à medula espinhal, e são incorporadas pelos neurônios motores. Como esses neurônios não se replicam ao longo da vida, o conserto está feito – eles passam a usar o gene correto, conseguem fabricar a proteína SMA, e os sintomas da doença começam a regredir. (O vírus-vetor não se reproduz, e é eliminado do organismo.) A vida da criança está salva – e ela pode começar o longo processo de fisioterapia para recuperar os movimentos.
Além do Zolgensma existe um outro medicamento que pode ser utilizado no tratamento para a AME, que é o Spinraza (lançado em 2016 pelo laboratório americano Biogen). O Spinraza modifica o gene SMN2, permitindo que fabrique a proteína completa. Se o corpo não tem o SMN1 ou é defeituoso, o organismo apela para o SMN2 – ele produz uma proteína um pouco mais curta, que não funciona tão bem quanto a completa. O problema é que o Spinraza precisa ser aplicado durante toda a vida. A criança inicialmente toma três “doses de ataque”, com intervalo de 14 dias, e uma quarta dose 30 dias mais tarde. A partir daí, precisa receber uma dose do medicamento a cada quatro meses.
Outra diferença desse medicamento é que o Spinraza deve ser administrado por via intratecal (uma injeção diretamente na medula espinhal, na parte inferior das costas), um procedimento que pode ser arriscado. Já o Zolgensma é aplicado numa veia do braço ou da perna, o que é bem mais simples e seguro.
Porém, a diferença e a evolução mais importante desse tratamento é que o Spinraza desacelera a progressão da doença, mas não impede que ela continue avançando, como é o caso do Zolgensma. O Spinraza não é tão caro quanto o Zolgensma, mas custa cerca de R$ 320 mil a dose. A longo prazo, a despesa pode acabar até maior, já que o medicamento deve ser usado por toda a vida (a um custo de R$ 960 mil por ano). O Spinraza é oferecido gratuitamente pelo SUS. Mas isso nem sempre é cumprido; em alguns casos, as famílias precisam entrar na Justiça para conseguir recebê-lo.
Após muitos questionamentos quanto aos efeitos colaterais, em agosto de 2020, a Anvisa liberou o Zolgensma no Brasil, também para menores de 2 anos. A agência observou que os efeitos colaterais do produto são considerados controláveis, sendo que o mais comum observado nos estudos foi o aumento das enzimas hepáticas, resolvido após tratamento com corticosteróides.
Um estudo publicado pela Elsevier, realizado nos EUA com 100 bebês revelou que, em 90% dos casos, eles tinham níveis aumentados das enzimas hepáticas, o que pode indicar danos no fígado. Isso acontece porque, ao detectar a presença do vírus AAV9, o organismo dispara uma reação imunológica contra ele – e as células de defesa acabam atacando o fígado. Mas, na maioria dos casos, essa reação pode ser contida com anti-inflamatórios. Eles então concluíram que o risco de morte ao fazer o tratamento com o Zolgensma é infinitamente menor do que deixar a AME evoluir para uma morte quase certa.
Por ser o remédio mais caro do mundo, foram levantadas muitas investigações para entender o mecanismo desse tratamento e o porquê do valor cobrado. A empresa farmacêutica explicou que são levados em consideração três fatores para estipular o preço: o ganho terapêutico oferecido pelo remédio, seu mecanismo de ação único (que atua diretamente na causa da doença, não apenas sobre os sintomas) e o processo de produção da droga, que é caro e complexo.
Esse medicamento usa um vetor viral (um adenovírus montado em laboratório para transportar determinado pedaço de material genético), mesma tecnologia usada nas vacinas anti-Covid da AstraZeneca e da Johnson & Johnson, bem como na russa Sputnik V. E elas custam 5 a 10 dólares a dose; não US$ 2 milhões. A variação de valor é devido a diferença da escala de produção. Enquanto essas vacinas terão centenas de milhões, ou até bilhões, de doses fabricadas e vendidas, o Zolgensma vai vender muito menos – porque não existem bilhões de crianças com AME, precisando dele. Dessa forma, o investimento inicial feito pela empresa farmacêutica precisará se pagar com um número muito menor de tratamentos.
Atualmente a Novartis, farmacêutica responsável pelo remédio, doa 100 doses do Zolgensma por ano no mundo, num esquema de sorteio. Segundo a empresa, para participar do sorteio, os bebês precisam ter menos de 2 anos de idade, diagnóstico de AME e morar em países onde o tratamento ainda não tem aprovação regulatória. No Brasil, uma criança foi beneficiada pela iniciativa. Mas o esquema não é mais válida por aqui. Como o produto já possui registro no país, o Brasil automaticamente deixou de ser elegível.
O valor cobrado pelo remédio, US$ 2,1 milhões, é o praticado no mercado internacional. No Brasil, o Zolgensma ainda não tem preço oficial, tabelado, e por isso está sujeito a outro fator: a cotação do dólar, que disparou nos últimos dois anos.
Fontes:
FDA afirma segurança do medicamento - https://www.fda.gov/news-events/press-announcements/statement-data-accuracy-issues-recently-approved-gene-therapy
Novartis libera uso do medicamento para crianças com menos de 2 anos - https://www.novartis.com/news/media-releases/novartis-stands-behind-zolgensma-onasemnogene-abeparvovec-xioi-treatment-children-less-2-years-age-spinal-muscular-atrophy
Liberação da Anvisa para uso do medicamento no Brasil -http://antigo.anvisa.gov.br/pt_BR/noticias/-/asset_publisher/FXrpx9qY7FbU/content/aprovado-registro-de-produto-de-terapia-genica/219201/pop_up?_101_INSTANCE_FXrpx9qY7FbU_viewMode=print&_101_INSTANCE_FXrpx9qY7FbU_languageId=pt_BR
Estudo sobre os efeitos colaterais do medicamento - https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/33186633/